Fonte: O Globo
Por Felipe Santa Cruz* e Renata Gil**
O Brasil vivenciou nos últimos anos intensas conturbações político-institucionais que geraram desarranjos sociais diversos, além de trágicos desfechos. A pandemia — que já levou a vida de mais de 428 mil brasileiros — provoca efeitos colaterais gravíssimos, sociais e econômicos, para nossa sociedade.
A consequência mais sofrida é a fome, o agravamento da insegurança alimentar, que já atingia 59% dos domicílios em 2020, segundo a pesquisa “Efeitos da pandemia na alimentação e na situação da segurança alimentar no Brasil”, coordenada pelo Grupo de Pesquisa Alimento para Justiça: Poder, Política e Desigualdades Alimentares na Bioeconomia, com sede na Universidade Livre de Berlim.
O Brasil havia deixado o Mapa da Fome da ONU em 2014, superando um atraso estrutural. O regresso a esse vergonhoso quadro coloca como desafio central vencer as duas pandemias —a da Covid-19 e a que deixa milhões de brasileiros sem o que comer.
Imersos em disputas dispersoras de atenção e energia, deixamos de garantir os mais basilares direitos do cidadão. Ou é possível prover a “dignidade da pessoa humana” — fundamento cravado já no artigo 1º, inciso 3º, da Constituição Federal — e, ao mesmo tempo, deixá-la com fome?
A alimentação é um direito social inscrito no artigo 6º da Lei Maior, ao lado da educação, da saúde, do trabalho, da moradia, do transporte, do lazer e da segurança. Ela também figura no inciso 4º do artigo 7º, em meio aos direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, e no inciso 7º do artigo 208, que trata do dever do Estado com a educação.
A organização do “abastecimento alimentar” consta do inciso 8º do artigo 23 como competência comum da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios. No artigo 227, o direito à alimentação desponta como obrigação da família, da sociedade e do Estado para com crianças, adolescentes e jovens, “com absoluta prioridade”. Posto isso, sobrevém, então, a pergunta: por que temos aceitado — calados e passivos —o reflorescimento da fome?
Por acaso, estamos sofrendo de um transtorno que nos impede de enxergar a realidade? Para não atribuir tamanho desrespeito à Constituição e à vida a uma deliberação torpe, vamos creditá-lo à crise político-institucional ora vigente — e à inação irrestrita dela derivada. Descruzemos os braços, pois. Precisamos dar de comer a quem tem fome.
Não é por outra razão que a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) unem-se em apoio à campanha Brasil sem Fome, da Ação da Cidadania, que já entregou o equivalente a 225 milhões de pratos de comida para famílias vitimadas pela fome.
Enquanto não retornam as políticas públicas eficazes contra a extrema pobreza e de garantia da segurança alimentar dos brasileiros, é urgente que a sociedade civil amplie a solidariedade para assegurar condições de sobrevivência mínimas às camadas vulneráveis da população.
Participe, doe já, não podemos esperar. A urgência e a pressa — já dizia Betinho — caminham de mãos dadas com a fome.
*Presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil
**Presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros