Navio sem capitão na pandemia

Este ano já está no epitáfio da história contemporânea

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Fonte: O Globo
 

São poucas as certezas da vida. Se formos rigorosos, podemos reduzi-las a apenas uma: vamos morrer um dia. Normalmente morremos de causas conhecidas, e assim falece a humanidade, mas de vez em quando a natureza nos mostra o estrago que ela pode causar no mundo. Assim são as pandemias, que não respeitam limites geográficos, sistemas políticos, partidos, religiões, mercados, idades, gêneros ou condições sociais. Tudo isso é irrelevante para um ser microscópico cujo único objetivo é sobreviver dentro do nosso metabolismo. E quando as pandemias chegam, promovem freios de arrumação na Humanidade. Só elas têm esse imenso poder.

Com milhões de infectados e milhares de óbitos, apenas a futurologia pode prever quantos ainda perderão a vida, mas 2020 já está no epitáfio da história contemporânea. Ironicamente, esse mesmo ser microscópico está promovendo mudanças que até pouco tempo seriam impensáveis. Uma lei de bilhões de anos, a da seleção natural, nos revela os valores que realmente importam para a nossa sobrevivência como espécie. Eles nunca mudaram, apenas estavam sendo negados até a pandemia os resgatar das trevas: solidariedade, ciência, verdade e cultura.
A solidariedade é a nossa característica mais Homo Sapiens, a que nos diferencia dos bichos, mas defendê-la hoje no Brasil é um crime passível de linchamento. E a pandemia está mostrando que a solidariedade é a rede invisível que nos une e protege como humanidade.
Na ciência vivemos tempos estranhos, nos quais ainda existem terraplanistas. Conceitos e valores medievais, antes restritos às igrejas retrógradas, hoje ocupam cargos no governo, que não é mais laico. A pandemia nos obriga a rezar pela cartilha da ciência. Uma inversão surpreendente ocorre no mundo quando a opinião mais importante hoje não é mais dos presidentes ou primeiros-ministros, mas de um etíope de sotaque engraçado, o Tedros Adhanom, da OMS. Da forma mais dolorosa possível, a ciência veio nos resgatar da Idade Média.
A verdade dependia de provas para sê-la. Hoje basta repetir uma mentira muitas vezes para que ela inverta seu valor. O braço direito da mentira, as fake news, destroem reputações, governos e pareciam invencíveis até a pandemia nos obrigar a depender da verdade para viver. Ela se concentra hoje no jornalismo, na ciência, em instituições, agências internacionais e na nossa consciência.
Por último, a cultura, que virou palavrão no país mais criativo do mundo: sua aniquilação contínua se deve ao fato de ela não poder ser contida como um rio e suas margens. A cultura é um mar e capitães autoritários não o sabem navegar, pois não há leme ou bússola, apenas ondas e marés criativas. Não há solidariedade sem cultura, e vice-versa.
Hoje vivemos um desgoverno que nega a fome, nega a pandemia, aumenta a miséria e violenta a Constituição. Mas aqueles seres microscópicos estão nos instrumentalizando para reconstruir a Humanidade que queremos na pós-pandemia, através da solidariedade, ciência, verdade e cultura.
Daniel Souza é presidente do Conselho da Ação da Cidadania