Fonte: Folha de S.Paulo
Para Rodrigo Afonso, diretor-executivo da ONG Ação da Cidadania, organização de combate à fome fundada por Betinho em 1993, é inaceitável a frase proferida por Paulo Guedes na manhã desta quinta-feira (17). A sugestão de destinar sobras de alimentos de famílias e restaurantes a pessoas vulneráveis evidenciaria que o ministro “nunca sentou com uma família para saber o que é fome.”
“Infelizmente é a visão elitista desse governo, que não compreende o povo e, obviamente, não compreende o que é a fome”, diz Afonso.
O ministro da Economia comparou, no Fórum da Cadeia Nacional de Abastecimento, o prato de um brasileiro com o prato de um europeu. “O prato de um [membro de] classe média europeu, que já enfrentou duas guerras mundiais, são pratos relativamente pequenos. E os nossos aqui, nós fazemos almoços onde às vezes há uma sobra enorme. Isso vai até o final, que é a refeição da classe média alta, até lá há excessos”, disse Guedes.
Para Afonso, a situação de insegurança alimentar no país, que atinge mais de 120 milhões de pessoas, é resultado da destruição das políticas de combate à fome por parte do governo federal. “O preço dos alimentos aumentou pela falta de planejamento, o governo é a causa da fome no Brasil.”
Ele explica que, além da extinção do Conselho de Segurança Alimentar (Consea) e do programa de estoques reguladores de alimentos, houve reduções no incentivo ao pequeno produtor –de R$ 1,3 bilhão em 2014 para R$ 151 milhões em 2020—e ao programa de cisternas na zona rural –de R$ 643 milhões em 2014 para R$ 74 milhões em 2020.
Em contrapartida, diz, houve investimento maciço na agricultura para exportação. “Em vinte anos, a área plantada de arroz perdeu 50% do espaço de produção em hectares, junto com o feijão, que perdeu 76%. Já a soja e o milho tiveram expansão de 165% e 143%, respectivamente.”
“Ao longo dos anos, não se pensou em segurança alimentar, não se olhou para a produção de alimentos. As pessoas comem arroz e feijão, não soja e milho”, completa.
Em um aceno à Associação Brasileira de Supermercados, o governo deve avaliar proposta de flexibilização da regra que trata da validade de alimentos no Brasil.
Dentro da data de validade, o produto é considerado seguro para consumo. Após o vencimento, não deve ser ingerido. Outros países adotam o “best before” (consumir preferencialmente antes de), em que, ainda que o produto perca frescor ou nutrientes, é seguro para consumo.
“Como utilizar esses excessos que estão em restaurantes e esse encadeamento com as políticas sociais, isso tem que ser feito. Toda aquela alimentação que não for utilizada durante aquele dia no restaurante, aquilo dá para alimentar pessoas fragilizadas, mendigos, desamparados. É muito melhor do que deixar estragar essa comida toda”, afirmou Paulo Guedes.
Para Afonso, é preciso reduzir o desperdício na cadeia produtiva, mas o caminho é outro. “Mudar a validade dos alimentos para que sejam consumidos passa mensagem de que podemos dar qualquer tipo de comida a quem está com fome”, afirma.
“Somos a favor de legislações que tratam de doações de alimentos, desde que esse alimento esteja no prazo de validade, saudável”, completa Afonso.
Ele relembra outros momentos em que políticos brasileiros se expressaram sobre o tema, como a sugestão de João Doria (PSDB) de oferecer ração humana aos vulneráveis e a afirmação de Osmar Terra, à época ministro da Cidadania, de que não existiria fome endêmica no país.
A Ação da Cidadania, que em 2020 distribuiu 32 milhões de pratos de comida, conta com rede capilarizada pelas 27 unidades da federação, atua com advocacy e formação de lideranças comunitárias. Em novembro, lançaram a Agenda Betinho 2020, com 40 propostas de políticas públicas municipais de segurança alimentar e nutricional.
A intenção é orientar o desenvolvimento de planos de governo comprometidos com a temática e alertar a população sobre o contexto do país.
“A fome não se resolve com assistência social. Não é distribuindo cesta, doando prato. O que resolve é política pública, apoio à agricultura familiar, transferência de renda e geração de emprego”, diz Afonso.
Ele resgata a Constituição Federal, dizendo que o direito humano à alimentação está expresso no artigo 6º, que coloca o Estado como responsável pela alimentação de seu povo.
“Não se trata de entregar alimento para todo cidadão, é gerar riqueza, renda e lidar com a cadeia do alimento. Mas, em momentos de emergência, o governo é obrigado a atuar para salvar famílias”, afirma Afonso, apontando que a distribuição de cestas básicas para grupos populacionais tradicionais caiu de 82 milhões, em 2014, para 6 milhões em 2020.
“Betinho dizia que, quando pessoas passam fome, todos os outros direitos lhes foram negados”, diz Afonso. “Então, depois de todos os direitos negados, dar um alimento vencido, ração humana, é uma humilhação. É inaceitável.”