Daniel Souza
Presidente do Conselho da Ação da Cidadania
Betinho morreu de AIDS no dia 9 de agosto de 1997, que por uma dessas coincidências da morte, naquele ano caiu no Dia dos Pais. Desconhecida e sem cura, ela chegou no Brasil no início da década de 80, apavorando a população, e quando uma sociedade está com medo é que o ovo da serpente eclode.
Para quem não viveu naquela época, é importante lembrar que não havia internet ou redes sociais, mas o preconceito já era o mesmo, e, como o próprio nome diz, foi o primeiro a chegar. Enquanto a ciência ainda tentava entender o HIV, os homossexuais e usuários de drogas foram imediatamente infectados com o vírus do estigma pelos velhos fiscais dos bons costumes. Algumas igrejas celebraram a chegada da “peste gay” para enfim nos redimir e livrar de todo o mal.
Os hemofílicos, cujas vidas dependiam da transfusão, foram contaminados com um coquetel mortal de HIV, DST, sífilis, hepatite e qualquer doença transmissível pelo sangue. Poucos sobreviveram à falta de uma política pública para controlar os bancos de sangue que o compravam e vendiam, sem testar. Betinho, Henfil e Chico Mário foram apenas três entre os milhões de hemofílicos que nunca tiveram a menor chance de escapar da AIDS.
Mas quando a Organização Mundial da Saúde descobriu que o vírus ataca a nossa imunidade, ou seja, que poderíamos morrer de qualquer doença, ficou claro que a solidariedade seria o (único) remédio até a cura chegar. Ainda não temos uma vacina, mas podemos celebrar que há mais de 40 anos nasceu um movimento unindo artistas, ONGs, agências internacionais, empresas e a mídia, que nunca parou de exigir remédios e preservativos gratuitos, campanhas de prevenção inclusivas, e, principalmente, respeito aos soropositivos. O governo brasileiro quebrou as patentes dos medicamentos, não porque queria brigar com os laboratórios multinacionais, mas porque a sociedade assim o exigiu.
Ao contrário da fome, a AIDS não tem cor, classe social, gênero ou religião. É um vírus sem preconceito, democrático até (n)a morte, o que explica o inesgotável investimento internacional sempre disponível para enfrentar o HIV, também ao contrário da fome.
Mas, assim como nos últimos anos perdemos o protagonismo no enfrentamento à insegurança alimentar, o perdemos também no combate à AIDS quando outro vírus, muito mais perigoso, infectou o último governo com um fundamentalismo que não reconhecia a Constituição ou o Juramento de Hipócrates, apenas a Bíblia. Eu quero informar aos que usurparam o Estado laico brasileiro que esse microrganismo não teme a Deus, apenas a ciência, pois é ela que um dia vai descobrir a cura da AIDS.
Meu pai não viveu para testemunhar essa cura (que em breve virá), mas lá no início da epidemia ele conseguiu injetar no DNA da sociedade o anticorpo contra o preconceito e a intolerância: a cidadania.
Ou seja, ela já está no nosso sangue, só precisamos praticar.