Fonte: BBC News Brasil
Um dos pontos mais importantes — e menos comentados — do discurso do presidente Jair Bolsonaro na Assembleia Geral da ONU, na terça-feira (22/09), se referia à produção de alimentos.
"No Brasil, apesar da crise mundial, a produção rural não parou. O homem do campo trabalhou como nunca, produziu, como sempre, alimentos para mais de 1 bilhão de pessoas. O Brasil contribuiu para que o mundo continuasse alimentado", afirmou o presidente. "Garantimos a segurança alimentar a um sexto da população mundial (…) O Brasil desponta como o maior produtor mundial de alimentos."
A fala se choca com dados divulgados pelo IBGE menos de uma semana antes da fala do presidente.
Mais de 10 milhões de brasileiros vivem em situação de insegurança alimentar grave, segundo o órgão. Em outras palavras, essa multidão — que incliui crianças — literalmente passa fome no Brasil.
Os dados chamam ainda mais atenção quando postos em perspectiva: em 2014, quatro anos antes da coleta dos dados agora divulgados, o Brasil oficialmente saiu do Mapa da Fome das Nações Unidas, em uma conquista aplaudida pelo mundo inteiro.
A BBC News Brasil conversou com alguns dos principais especialistas do país em temas como acesso à alimentação adequada e fome para responder a seguinte pergunta:
Como, afinal, o mesmo país que alimenta boa parte do planeta tem ao mesmo tempo tantos milhões de famintos?
Segundo a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) do IBGE, divulgada em 17 de setembro, 10,3 milhões de brasileiros passavam fome durante o levantamento — um aumento de 3 milhões de pessoas sem acesso normal a refeições em 5 anos.
A conta não inclui pessoas em situação de rua.
Segundo o estudo, a insegurança alimentar grave no Brasil é registrada principalmente em áreas rurais: 23,3% da população urbana passam fome, enquanto 40,1% da população rural atravessam a mesma situação.
Ainda segundo o IBGE, quanto mais moradores viverem em um domicílio, maior será a chance de haver fome ali. Do total de brasileiros que passavam fome no período da pesquisa, a maioria vivia na região Nordeste, seguida pelo Sudeste e pelo Norte.
O IBGE divide o conceito de insegurança alimentar em 3 categorias.
A insegurança leve acontece quando a família não tem certeza se terá acesso a alimentos no futuro, e quando a qualidade da comida já é ruim. Diz o IBGE: "Nesse contexto, os moradores já assumem estratégias para manter uma quantidade mínima de alimentos disponíveis. Trocar um alimento por outro que esteja mais barato, por exemplo."
Já a insegurança moderada surge quando os moradores já têm uma quantidade restrita de alimentos — menos comida na despensa do que o satisfatório.
Por fim, a insegurança grave aparece, nas palavras o IBGE, "quando os moradores passaram por privação severa no consumo de alimentos". É nesta categoria que se encaixa a definição tradicional de fome.
Considerando os três tipos de insegurança, o estudo mostra que o problema do acesso a alimentação de qualidade também é grave. Segundo o IBGE, "pelo menos metade das crianças menores de cinco anos viviam em lares com algum grau de insegurança alimentar".
Isso equivale a 6,5 milhões de crianças. Quando a referência é insegurança grave — ou fome — 5,1% das crianças com menos de 5 anos e 7,3% das pessoas com idade entre 5 e 17 anos vivem nessa condição.
Diferentemente do que o presidente Jair Bolsonaro afirmou, o Brasil não é o primeiro, mas o terceiro maior produtor de alimentos do planeta — com mais de 240 milhões de toneladas no ano passado, ficando atrás apenas da China e dos EUA.
Segundo a ABIA, Associação Brasileira da Indústria de Alimentos, o Brasil exportou comida para mais de 180 países, movimentando 34,1 bilhões de dólares no ano passado.
A maior parte, 36,8%, foi para a Ásia, principalmente para a China. Em seguida vinham União Europeia (18,8% das exportações) e Oriente Médio (14,3%).
Segundo a associação, o Brasil é o segundo exportador mundial de alimentos industrializados em volume e o quinto em valor.
É também o primeiro produtor e exportador mundial de suco de laranja; o segundo produtor e primeiro exportador mundial de açúcar; o segundo produtor e primeiro exportador mundial de carne bovina e de carne de aves.
Mas é importante diferenciar a origem dos alimentos que vão para a mesa do brasileiro e para as prateleiras no exterior.
Segundo o último censo agropecuário do IBGE, 70% dos alimentos consumidos pelos brasileiros vêm da agricultura familiar. Eles são produzidos em terras pequenas, com geralmente entre 1 e 2 hectares, administradas por pessoas da mesma família que costumam produzir para consumo próprio e vender o excedente.
Diferentemente das grandes monoculturas de soja ou café, ou dos grandes pastos da pecuária do agronegócio, a agricultura familiar é marcada pela diversidade de alimentos: de mandioca e hortaliças a milho, leite e frutas.
É graças a ela que o prato do brasileiro pode ser farto e colorido, como recomendam nutricionistas.
Já o agronegócio, de outro lado, abarca os maiores produtores do país e contribui com mais de 60% da balança comercial do país.
Com representantes em todos os níveis da política nacional, o agronegócio tem produção principalmente destinada à exportação.
Agronegócio x agricultura familiar
Daniel Balaban, diretor do Centro de Excelência contra a Fome do Programa Mundial de Alimentos da ONU no Brasil, diz que o nome do agronegócio, não à toa, é "negócio".
"O agronegócio vai aonde pagam mais, aonde ele tem mais lucro. O dólar a R$ 5,50, um dólar supervalorizado, fez com que o produto brasileiro ficasse muito barato para exportação, principalmente a China, que compra muito, fora outros mercados como Rússia. Fica muito barato para eles comprarem e o retorno é bom para o exportador", afirma.
Já o Kiko Afonso, Diretor Executivo da Ação da Cidadania, fundada pelo sociólogo Betinho (Herbert de Souza) em 1993 para combater a fome e a miséria no país, diz que a política de agricultura brasileira se orienta para as exportações.
Nas palavras de Afonso, isso pode ser "bom para a balança econômica, mas é péssimo para o consumo local, principalmente para as populações mais vulneráveis".
"Você soma dois grandes fatores: uma política de governo que olha para o agronegócio e a exportação em detrimento do pequeno produtor, o que encarece o alimento, e uma segunda vertente de desigualdade social absurda, onde grande maioria da população vive com um salário abaixo de uma média aceitável para se sobreviver". diz.
"Os dois elementos em conjunto geram uma diminuição do poder de compra das famílias e obviamente dificuldade para a aquisição de alimentos."
Os especialistas destacaram à BBC News Brasil que a atenção destinada por governos à agricultura familiar, que põe comida na mesa do brasileiro, vem diminuindo no Brasil.
"A ONU acompanha há muito tempo todos os países e o Brasil é um deles", diz Balaban. "Com a diminuição das políticas de fomento aos agricultores familiares, é intrínseco o aumento do número de pessoas passando fome."
Ele cita o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que no passado chegou a ter orçamento superior a 1 bilhão de reais e foi duramente cortado até que, no governo de Michel Temer. encolheu de R$ 478 milhões para R$ 294 milhões.
Pelo programa, o governo compra alimentos de pequenos produtores e os distribui para pessoas de baixa renda. Em meio à pandemia, o governo Bolsonaro anunciou R$ 500 milhões para uma retomada do PAA.
"O Pronaf, Programa de Apoio ao Agricultor Familiar, diminuiu bastante o número de empréstimos com juros subsidiados para eles comprarem a sua produção, fertilizantes, sementes. E outros programas, por exemplo de captação de água da chuva com cisternas, também caíram drasticamente", diz o especialista da ONU.
"Essa população do campo é muito vulnerável, então ela precisa que esteja sempre sendo incentivada e apoiada por políticas públicas do governo."
Afonso, da Ação da Cidadania, concorda.
"É sempre importante lembrar que esse governo extinguiu o Conselho de Segurança Alimentar (Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, Consea), justamente o órgão que dialogava com a sociedade civil na construção de políticas de segurança alimentar no Brasil", afirma.
Por medida provisória em janeiro do ano passado, Bolsonaro extinguiu o conselho, criado em 1993 como parte da criação de um marco legal para o combate a fome.
O órgão era formado por 60 voluntários — 40 representantes de ONGs e movimentos sociais e 20 do governo.
"A situação é muito grave, e estamos falando de muita gente que pode morrer de fome no Brasil", diz Afonso. "Isso é inaceitável. Nosso fundador, o Betinho, sempre dizia que a fome é uma das piores, se não a pior, indignidade que o ser humano pode ter; E a gente luta justamente para que isso não aconteça."
A fome, segundo o IBGE, se concentra justamente nas regiões rurais — aquelas onde se produz a comida.
Marcelo Neri, professor da FGV, ex-presidente do Ipea e ex-ministro-chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República entre 2013 e 2015, diz que "o morador do campo é mais pobre, produz alimentos, mas não ganha o suficiente para comprá-los".
"Em 2019, 53% dos 20% mais pobres e 10% dos 20% mais ricos brasileiros declaravam que faltava dinheiro para alimentação. Já no resto do mundo, os números eram 48% nos 20% mais pobres e 21% nos 20% mais ricos", diz o professor.
"Ou seja, nossos mais pobres têm hoje mais insegurança alimentar que no mundo, enquanto nossos mais ricos têm menos. É a famosa desigualdade tupiniquim."
Os demais especialistas também apontam a precariedade vivida no campo.
"O Brasil teve muitas políticas de ajuda aos pequenos agricultores familiares no passado. E essas políticas perderam força nos últimos governos: já no final do governo da Dilma, Temer e agora. Praticamente estão, vamos dizer, muito pequenas as políticas de apoio aos pequenos. Isso faz com que, além deles diminuírem a produção ou não comerem, acaba trazendo fome ao campo", avalia Balaban, da ONU."Se o trabalho já é precarizado nas regiões urbanas e vem se precarizando cada vez mais, especialmente num governo que nos últimos anos tem lutado, por exemplo, contra as fiscalizações de trabalho análogo à escravidão no campo, você imagina o grau de desigualdade social vista no campo no Brasil", pondera Kiko Afonso."Elas acabam tendo que migrar ou para centros urbanos, para morarem em favelas e regiões super pobres, porque são pessoas que vieram do campo e têm enorme dificuldade de adaptação nas grandes cidades, ou elas têm que se adequar e trabalhar para o grande agronegócio, que obviamente tem foco em lucrar o máximo possível. Vemos a manutenção de uma visão escravocrata do país onde o trabalhador do campo é super desvalorizado."
Como o avanço da pandemia do novo coronavírus afeta o cenário da fome no Brasil?
Uma pesquisa da FGV divulgada em julho mostrou que a faixa da população que vive em extrema pobreza caiu de 4,2% para 3,3% da população, a menor taxa dos últimos 40 anos no Brasil.
"É triste dizer isso, mas o Brasil tem uma renda média de R$ 480. De repente, quando 65 milhões de pessoas receberam R$ 600 na sua conta, o Brasil diminuiu incrivelmente, durante este período dos recursos emergenciais, o número de pessoas abaixo da linha da pobreza", diz Daniel Balaban, do Centro de Excelência contra a Fome do Programa Mundial de Alimentos da ONU.
A extrema pobreza se refere a quem vive com menos de US$ 1,90 por dia, ou R$ 154 mensais.
O resultado, no entanto, não é razão para comemoração.
"Se a gente já tinha antes mais de 80 milhões de brasileiros em algum grau de insegurança alimentar, seja leve, moderado ou grave, esse número certamente vai aumentar, e a gente estima que supere a casa dos 100 milhões, o que seria o maior número da História do Brasil", estima o representante da Ação da Cidadania.
"A recessão e a crise não vão ser resolvidas no curto prazo nem no Brasil nem em qualquer lugar do mundo, o desemprego já é quase recorde, e a gente vê que o auxílio emergencial é insustentável no modelo atual criado pelo governo dos últimos anos que praticamente amarrou qualquer investimento", ele afirma.
Balaban completa: "O problema todo é que quando os recursos emergenciais acabarem, volta-se ao problema anterior, porque o problema anterior era estrutural, e esse recurso é emergencial. Foi extremamente importante, só que acaba."
Marcelo Neri, da FGV, vai além.
"Segundo nosso último levantamento apesar da queda de renda do trabalho recorde de 20,5% na pandemia, cerca de 13,1 milhões de pessoas saíram da pobreza em plena pandemia, O que explica este paradoxo é a "generosa" concessão do auxílio emergencial que chegou a 67 milhões de brasileiros ao custo de 322 bilhões de reais durante 2020", afirma.
"O problema é que o auxílio termina em 31 de dezembro e aí não só os ex-pobres vão voltar a condição inicial como terão a companhia de outros novos pobres deslocados pela pandemia."
A resposta unânime é "não".
"Os números da POF, infelizmente para a Ação da Cidadania, não surpreendem. A gente sabia da dimensão das famílias que estavam nos pedindo alimento em vez de educação, saúde, etc. Quando a pessoa abre mão desses outros direitos para pedir comida, é porque a situação realmente está muito grave", diz Kiko Afonso.
"Infelizmente, especialmente no Brasil, esses problemas que são dramas, não são tragédias, têm pouca visibilidade."
Já Marcelo Neri pondera que os resultados da pesquisa do IBGE "desafiam aqueles que acreditam que fome é coisa do passado no Brasil" e que outros estudos corroboram o resultado.
"Antes que ataquem o mensageiro, observamos o mesmo drama em evidências internacionais sobre o Brasil citados. A proporção daqueles que não têm dinheiro para comprar alimentos cai de 20% até 18% e depois sobe para 30% em 2017-18, o que é consistente em termos de período e prazos com a última POF-IBGE", diz.
"Este mesmo patamar de 30% é mantido em 2019. O Brasil, que estava em número 30 em 2014, passou em 2019 a posição 82 em 150 países. Ou seja, os movimentos identificados nas pesquisas ibgeanas são robustos, e o aumento observado até 2017-18, se manteve em 2019."