'Garimpo contra a fome' no Rio: ONGs operam no máximo da sua capacidade, mas não dão conta da fila de famintos

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Fonte: EXTRA

As imagens da fila de pessoas em busca de pelancas e ossos distribuídos na Zona Sul do Rio, publicadas nesta quarta-feira pelo EXTRA, correram o país e revelaram a invisibilidade daqueles que passam fome no Rio. O ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou na mesma data, que o governo federal apresente, em dez dias, informações sobre as políticas públicas de combate à fome no país. O pedido foi feito na segunda-feira pela OAB nacional, instigada pela ONG Ação da Cidadania.

A pandemia agravou o problema da fome, e os benefícios concedidos pelos governos não acompanharam o ritmo de galope do desemprego e da inflação. Sem dados estatísticos atualizados sobre quem sofre com a falta de acesso a alimentos no Rio, o estado também não viu os seus dois projetos de auxílio emergencial decolarem durante a pandemia. Enquanto isso, o garimpo contra a fome estarreceu representantes de ONGs como a Ação da Cidadania e o Refettorio Gastromotiva, que distribuem mantimentos e refeições.

Diretor Executivo da Ação da Cidadania, Rodrigo “Kiko” Affonso define o trabalho de combate à fome no Rio como um “enxuga-gelo”. Em números, ele explica a agonia de ter uma fila de pessoas pedindo mantimentos maior do que a sua capacidade atendimento.

— Hoje, fornecemos alimentos e itens da cesta básica para 300 parceiros que distribuem refeições em várias localidade do estado. Para isto, a nossa produção foi dobrada durante a pandemia. Deveríamos comemorar o aumento da operação e das pessoas contempladas, mas também amargamos mais de 2 mil entidades que pedem alimentos à Ação da Cidadania, mas não temos como atender. Trabalhamos no limite, mas não damos conta da demanda. É muito difícil lidar com isto — desabafa.

Coordenadora do Refettorio Gastromotiva, Clícia Couto também relata filas por fornecimento das refeições produzidas pela Organização Social. Atualmente, mais de 80 entidades pedem para que as quentinhas sejam doadas aos moradores das suas localidades. O Refettorio Gastromotiva, no entanto, já opera no limite de 500 refeições diárias (número que foi dobrado pela demanda da pandemia).

— É de cortar o coração ver tanta gente precisando dos nossos serviços, sem que tenhamos como ajudar mais. Mas, é importante ressaltar que, antes da pandemia, nosso foco era fornecer alimentos para a população de rua, que representava a maior parte daqueles que nos procuravam. Hoje, percebemos que a demanda é da população do Rio, de maneira geral. O desemprego foi determinante para isto — diz.

De acordo com o IBGE, o desemprego ficou em 14,1% no segundo trimestre de 2021, atingindo 14,4 milhões de brasileiros. A inflação, de acordo com a prévia deste mês, chegou a 10,05% no acumulado em 12 meses, ultrapassando os dois dígitos pela primeira vez desde fevereiro de 2016.

Faltam números exatos sobre a fome no Rio

Uma análise mais aprofundada do retrato da fome no Rio carece de dados regionais atualizados, explicam especialistas. Mas, a situação fluminense espelha as estatísticas nacionais, e de forma mais agravada, afirma o economista Marcelo Neri, diretor do FGV Social. Isso porque o desemprego, em alta no país, vem atingindo recordes históricos no Rio.

— O Rio foi muito afetado porque, de um lado, tem uma população muito idosa, que precisa ser bem protegida, e, por outro, tem setor informal grande, que é o mais afetado quando se fecha a economia. A informalidade subiu muito nos últimos anos, foram sete pontos de porcentagem entre 2015 e 2020. A desigualdade trabalhista no Rio é maior que a brasileira — explica Neri, que comenta a proposta do governo estadual de investir em obras de infraestrutura para aumentar a geração de emprego.

— Faz sentido, mas o problema é que o Rio teve essa piora sem fazer qualquer tipo de ajuste fiscal ou previdenciário. Então é possível piorar ainda mais.

O economista recorta alguns dados recentes, para contextualizar as dificuldades do Rio: a renda do trabalho por fluminense da metade mais pobre do estado caiu 25,18% do último trimestre de 2019 ao segundo trimestre de 2021. Ou seja, efeito direto pandemia.

No mesmo período, a taxa de ocupação dos trabalhadores no estado caiu 14,3%, recorde no país. O resultado é que, pelo índice Gini, usado para calcular desigualdade social, o Rio deu, desde 2016, um "salto triplo", como define o economista, na desigualdade. O índice mais recente é de 0.68 no Rio, contra 0.66 no Brasil.

No final de maio, o IBGE divulgou que o Rio havia encerrado o primeiro trimestre do ano com 1,6 milhão de desempregados, 316 mil a mais que o registrado em março de 2020. A taxa de desemprego no estado ficou em 19,4%, cerca de 32% maior que a taxa geral do país (14,7%), que também foi recorde da série histórica da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad).

Neri destaca que a insegurança alimentar entre os brasileiros aumentou mesmo com o pagamento de auxílio emergencial: dentro da classe 40% mais pobre do país, 46% responderam, no final do ano passado, que faltou dinheiro para comprar comida.

— Hoje você tem cerca de 27 milhões de pessoas abaixo da linha da pobreza no Brasil, considerando parâmetro de renda abaixo de R$261 mensais por pessoa. Com R$43 bilhões, seria possível sanar esse problema. É praticamente mais um bolsa família, que custa R$35 bilhões por ano. Não é um custo tão alto se dividirmos pela população, o que daria R$15,41 por brasileiro, por mês.

Os dados do IBGE do ano passado apontam um contingente de 19,2 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar grave, o que corresponderia a 8,7% da população. Pelos critérios da ONU — mais de 5% da população de um país nessa situação - o Brasil, figuraria no Mapa da Fome, mas uma nova edição ainda não foi publicada. O fato é que o número é extremamente alto e a tendência é de piora, frisa Daniel Balaban, representante no Brasil do Programa Mundial de Alimentos (WFP) e Diretor do Centro de Excelência contra a Fome.

— Se nada for feito, vai piorar cada vez mais. Não existe milagre, só vai melhorar se houver um trabalho forte e coletivo dos governos. Esse tema precisa entrar na pauta e no debate público. A curto e médio prazo, o país não vislumbra saída para o caos econômico que se encontra atualmente. E o Rio reflete muito o que está acontecendo no país, segundo o nosso mapa da fome é um dos estados com mais dificuldades no país.

Balaban acrescenta que o Brasil desperdiça, em média, 26 milhões de toneladas de alimento por ano, durante a cadeia de produção, transporte e comercialização, uma quantidade que seria suficiente para alimentar toda a população necessitada do país, e mais metade da África. Financeiramente, esse desperdício significa um prejuízo financeiro de cerca de R$100 bilhões.

— O esforço ainda é de salvar vidas contra Covid, mas agora será de salvar vidas contra fome. É importante dizer que a pandemia não é a culpada, ela apenas acelerou o processo que já vinha acontecendo há cerca de seis anos. Hoje, enquanto a economia não é reestruturada, a solução imediata que vislumbro é a manutenção do auxílio emergencial — afirma Balaban.

Programas estaduais e municipais não decolam

Enquanto o auxílio emergencial federal caminha para o seu fim, em novembro, o governo do Rio promete manter seu benefício até dezembro de 2022, agora ampliado. Os números, porém, ainda estão aquém da expectativa, que era de 355 mil famílias beneficiadas com pagamentos de até R$300. Os relatórios de execução do Supera Rio, nome do programa, ainda não foram divulgados, mas, procurado, o governo do Rio informou que há cerca 100 mil famílias sendo atendidas, num investimento de mais de R$76 milhões.

No município, os programas anunciados também ficaram abaixo do alcance prometido. Em março, a Prefeitura criou o auxílio carioca, formado por programas já existentes e novos. A previsão do apoio emergencial às famílias mais pobres era de atingir 23 mil famílias, com pagamento de R$200 por beneficiário, mas até aqui, segundo levantamento do gabinete da vereadora Teresa Bergher (Cidadania), houve 15.015 contempladas, ou seja, 65% do objetivo. Com isso, já foram pagos R$3 milhões dentro dos R$5.5 milhões autorizados.

No auxílio empresa carioca, somente 5.022 empresas foram beneficiadas, frente à previsão de 13.506, e um gasto de R$10 milhões, um terço da despesa autorizada. Já o apoio ao comércio ambulante, que dá pagamento de auxílio de R$500, é o que programa que, até aqui, conseguiu alcançar sua meta. Os 10 mil ambulantes previstos foram atendidos.

As informações constam do Sistema de Informações Gerenciais (SIG), da prefeitura.

— Com a inflação e o número de desempregados disparando a cada dia, a prefeitura precisa aumentar o número de pessoas beneficiadas pelos programas sociais. O orçamento do município cresceu significativamente, logo, não seria pedir muito que o prefeito incrementasse a verba destinada aos programas de complementação de renda — afirmou a vereadora Teresa Bergher, presidente da Comissão dos Direitos Humanos da Câmara.

Procurada, a prefeitura afirmou que " já repassou aproximadamente R$ 93 milhões pelo do programa Auxílio Carioca" , o que atingiria cerca de 670 mil pessoas. O dado, porém, engloba programas antigos, como o Programa Cartão Família Carioca e o Cartão Merenda.

A prefeitura explicou que o Plano Estratégico do município prevê a ampliação do programa de transferência de renda a partir da reformulação do Cartão Família Carioca, para alcançar 100% das famílias em extrema pobreza, identificadas a partir do CADÚnico, e que possuam crianças com idade entre zero e 6 anos, um investimento de R$ 600 milhões de reais para contemplar 80 mil famílias.