Fonte: Flávia Oliveira/O GLOBO
Sou do tipo que ama Natal. Nos que passava sozinha com minha mãe, Dona Anna, sonhava com as mesas fartas das famílias numerosas nos anúncios de fim de ano. Por uma dúzia de anos recentes, realizei a fantasia. O núcleo modesto, nunca superior a quatro pessoas, foi multiplicado por dez em festança ecumênica batizada de Natal dos Desgarrados. Reunia, num agito de varar madrugada, amigos desacompanhados e arranjos familiares de todo tipo. Por causa da Covid-19, a décima terceira celebração não aconteceu como costumava. Éramos meia dúzia de mascarados irmanados ao restante da trupe, um discurso via internet com promessa de abraço presencial em 2021. Até lá, o compromisso é ficar vivo.
Sou do tipo que adora presentear. A cada Natal, ninguém nunca saiu de casa com as mãos abanando. Havia sempre uma lembrança, mesmo para quem se achegava na última hora, conhecido ou não. Este ano, não teve festa nem presente. O Noel que em mim habita reuniu o dinheiro dos regalos de quem tem e transformou em alimentos para os que precisam. Nunca tantos pedidos de colaboração, num indício de que a crise social agravou-se antes de chegar ao fim o calendário de pagamentos do auxílio emergencial – o último lote de R$ 300 será depositado na terça, 29, aos beneficiários nascidos em dezembro. Depois disso, é cada um por si, a menos que o espírito de Natal amoleça coração e cérebro de um governo tão indiferente quanto incompetente.
Sou do tipo engajada em ações sociais. Nas últimas duas décadas, estive permanentemente envolvida com ativistas e organizações da sociedade civil de favelas e periferias. É dessa proximidade que assisto a um agravamento — previsto em números, visível in loco — inédito da crise socioeconômica em decorrência da pandemia. Desde março, quando a Covid-19 começou a se espalhar pelo Brasil, tenho neste espaço chamado atenção para consequências nefastas na economia e nos grupos populacionais historicamente fragilizados: pretos e pardos, indígenas e quilombolas, mulheres e crianças, trabalhadores informais e famílias miseráveis. Dito e feito.
O movimento social, desde a primeira hora do primeiro dia da pandemia, alertou para os efeitos do distanciamento social num mercado de trabalho tomado pela informalidade. Chamou atenção para condições habitacionais e financeiras incompatíveis com o ritual de higienização das mãos com água, sabão e álcool gel. Sobretudo, alardeou que a população sem trabalho e renda, em pouco tempo, mergulharia na insegurança alimentar. Para completar, a comida encareceu. Em 2020, o IPCA-15, prévia do índice da meta de inflação, subiu 4,23%, maior resultado desde 2016.
No grupo Alimentação e Bebidas saltou 14,46%, recorde em 18 anos. O preço da comida que famílias compram em supermercados, mercearias e feiras disparou 18,71%, com pico de 22% em Fortaleza (CE). Arroz e feijão-preto subiram 72% e 44%, respectivamente.
Nos primeiros meses de pandemia, foi comovente assistir à mobilização da sociedade civil, em particular dos ativistas de favela, para arrecadar recursos, montar e distribuir cestas de alimentos, kits de higiene e água em territórios vulneráveis. Junto com o auxílio emergencial de R$ 600 por cinco meses, as ações aliviaram os impactos da primeira onda da Covid-19. De setembro em diante, com o corte do benefício à metade e o mercado de trabalho ainda debilitado (hoje são mais de 14 milhões de desempregados, outro recorde), a fome voltou a rondar os lares brasileiros. E os pedidos de ajuda se avolumaram. Tão intensamente que ajuda humanitária já desmobilizada teve de ser reativada.
A equipe do jornal “Voz das Comunidades” — que durante o ano integrou o Gabinete de Crise do Alemão e distribuiu 25 mil cestas básicas, 22 mil kits de higiene e 130 mil refeições — voltou aos doadores para uma campanha emergencial de Natal para entrega de mil cestas nos complexos do Alemão, da Penha e no Vidigal. O Coletivo Papo Reto, outro integrante do Gabinete, se mobilizou por mais 200 cestas. O mesmo fez o Coletivo Fala Akari. A arquiteta e urbanista Tainá de Paula, vereadora eleita pelo PT, organizou a “Ceia na Mesa”, para doar 300 cestas de alimentos. Na Baixada Fluminense, o Movimenta Caxias transformou doações de R$ 8 mil em ceia de Natal para 200 pessoas em situação de rua, kits de alimentos e brinquedos para crianças da Vila Operária e de Pantanal, comunidade onde viviam as meninas Emilly e Rebecca, de 4 e 7 anos, assassinadas no início do mês.
O Movimenta Caxias foi uma das organizações que recorreram à Ação da Cidadania por cestas básicas. A ONG fundada pelo sociólogo Herbert de Souza distribuiu este ano 9.500 toneladas de alimentos. O Natal Sem Fome, campanha sazonal reativada em 2017, quando a insegurança alimentar voltou a ameaçar o Brasil, entregou em todo o país 1.500 toneladas, 50% a mais que no ano passado: “Doamos absolutamente tudo o que arrecadamos de outubro a dezembro. Ainda assim, dezenas de organizações têm nos procurado pedindo ajuda. É um cenário preocupante, assustador. Tudo indica que 2021 será uma tragédia, porque a fome vai se agravar, se o auxílio emergencial for interrompido”, desabafou Daniel Souza, presidente do conselho da ONG.
A sociedade civil tem feito muito. Exauridos física e emocionalmente por um ano marcado por doença e morte, desemprego e fome, ativistas reuniram forças para assistir os necessitados nas semanas derradeiras de 2020. Como ensinou Betinho, quem tem fome tem pressa. Quem não tem urgência — e humanidade — é o presidente da República, que em plena pandemia prefere desqualificar vacina e flexibilizar acesso a armas de fogo, em vez de combater a fome. E faz o tipo bom cristão.
Feliz Natal.