Fonte: Folha de SP
Culpavam os desastres naturais ou mesmo Deus, até Josué de Castro denunciar: “A fome não é um fenômeno natural, mas um fenômeno social, produto de estruturas econômicas defeituosas”.
Mesmo sendo um dos mais respeitados intelectuais do mundo e presidente do Conselho da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura), Castro foi perseguido pelo regime militar, como hoje acontece com cientistas brasileiros que combatem a Covid-19.
O “milagre brasileiro” e décadas de omissão contra a miséria produziram 32 milhões de pessoas abaixo da linha da pobreza. Em 1993 nasceu o movimento nacional Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e Pela Vida, que o Betinho resumiu em cinco palavras: “Quem tem fome, tem pressa”.
Com estrutura descentralizada e organizada em comitês, a Ação rapidamente se espalhou pelo Brasil, países vizinhos e até pela Europa. Uma cidadania que estava represada explodiu, sem idade, cor, religião, orientação sexual, identidade de gênero, partido, condição social ou profissão, e convocou cada um a fazer sua parte.
O quilo de alimento não perecível virou moeda social enquanto exemplos surpreendentes se multiplicavam, como o caso de alguns presídios cariocas onde os presos ficaram 24h sem comer para doar à campanha.
A Ação da Cidadania passou a ser o maior movimento social de combate à fome da América Latina, em uma época em que não existia a internet; apenas a certeza de que são as ações coletivas e a solidariedade que nos definem como civilização.
Em 2014, o Brasil surpreende o mundo ao sair do Mapa da Fome da ONU. Já éramos referência no enfrentamento da Aids e agora também no combate à insegurança alimentar.
Como isso foi possível? Gostaria que a resposta fosse complexa ou sociológica, mas não é: bastou vontade política. Exatamente o que faltou na hora de proteger a população da fome das últimas crises políticas e econômicas. E, como os movimentos de placas tectônicas no fundo do mar, ela impulsionou uma onda de miséria que não parou de crescer.
Em 2017, depois de dez anos, a Ação da Cidadania precisou relançar a campanha Natal Sem Fome. Em 2018, os cortes nos programas e nas políticas públicas de combate à fome dispararam. Em 2019, o primeiro ato do atual governo extinguiu os Conselhos de Segurança Alimentar e Nutricional.
Em 2020, chegou a pandemia da Covid-19. Em 2021, chega a fome.
Aquela campanha simbólica que distribuía alimentos apenas no Natal virou ação emergencial, o que nos tem feito enviar 150 toneladas por semana para todo o Brasil.
Uma inédita rede de solidariedade foi criada com a ONU por meio da WFP/Brasil, da FAO, da Acnur, da Unicef, do Pacto Global e da Unesco, além de parcerias com a Fiocruz, Movimento Bem Maior, CNBB, Sesc. Isso sem falar de empresas, artistas e sociedade civil.
Tão difícil quanto arrecadar 10 mil toneladas de comida é fazer tudo isso chegar na ponta, principalmente a aldeias indígenas, populações ribeirinhas, quilombolas, centros de refugiados e a qualquer lugar em que a fome criou raiz.
A campanha Brasil Sem Fome pretende distribuir alimentos para oito milhões de pessoas em 2021, mas o que parece muito (e é!) representa uma gota no mar diante das 125 milhões de pessoas que hoje estão em insegurança alimentar.
Em 28 anos de história, nunca vimos uma emergência alimentar como esta.
Enquanto o Presidente da República inclui a pobreza em sua extensa lista negacionista, a Ação da Cidadania cobra apenas o que está em nossa Constituição: garantir à população brasileira a alimentação como direito social.
No mais, estamos ombro a ombro com o povo brasileiro até este país sair (de novo e definitivamente) do Mapa da Fome da ONU.